Por toda a parte, os Terreiros de Mina espalham magia e encantamento. Os Tambores de Crioula ditam o ritmo de festividades tradicionais como o Bumba-meu-boi. O berimbau atrai capoeiristas para as “Rodas de Angola” e a Dança do Congo anima o povo, mesmo nos rincões mais distantes. Na capital São Luís, os bailes de reggae se tornaram programa obrigatório para os turistas, o suingue fluindo solto pelas ruas antigas da “Jamaica Brasileira”.
Há um lugar, porém, onde o Maranhão é, antes de tudo, branco, muito branco: na Ilha dos Lençóis, no Arquipélago de Maiaú. Para começar, o panorama é dominado pela palidez monocromática de dunas sem fim, a Morraria, segundo os locais. Os habitantes deste lugar, aliás, merecem destaque especial: são brancos, branquíssimos, mais até que as próprias dunas. De tão brancos que são, ficaram conhecidos como os “Filhos da Lua” pelos poucos viajantes que se aventuravam pela região.
A fama dos “Filhos da Lua” se espalhou e acabou atraindo pesquisadores de diversos pontos do país. Em 1972, uma expedição patrocinada pela Organiza-ção Mundial de Saúde visitou o lugar e constatou que a Ilha abrigava a maior comunidade de albinos do mundo (em porcentagem da popula-ção). Imagine só: uma comunidade de albinos vivendo em plena costa maranhense, trabalhando sob o sol inclemente do Equador, numa região dominada por dunas gigantes! Estória de pescador? Parece, mas não é.
Ilha transita entre o real e o imaginário
Localizada no Arquipélago de Maiaú, num dos trechos mais recortados do litoral brasileiro, a Ilha dos Lençóis parece, realmente, transitar entre o real e o imaginário. São tantos os aspectos surpreendentes que envolvem este ponto distante do Maranhão que imagina-se, às vezes, se tratar de um faz-de-conta. Para que não restasse dúvida sobre a veracidade dos fatos que rondam a existência de Lençóis, fomos para a região das Reentrâncias Maranhenses para conhecer e registrar a Ilha, suas estórias, seus moradores. A jornada é longa e difícil. Lençóis está a quase dez horas de viagem da costa continental, mais precisamente da cidade de Cururupu, porta de entrada para as Reentrâncias. O lugar é um miríade de mangues, um labirinto de ilhas e de estuários interli-gados por inúmeros canais - os “furos” - e por estreitos braços de mar.
Para se aventurar por estas águas, o barqueiro deve conhecer o complicado jogo das marés que comanda o ritmo da navegação em Maiaú. Em poucos minutos, a vazante transforma braços de mar caudalosos em desertos enlameados e empoçados, encalhando barcos e jangadas por horas a fio. “Pra sair por esse mar afora é preciso conhe-cer os caminhos do mangue, os segredos da maré. Se não, a gente acaba atolado por aí, preso na lama, esperando a água chegar”, confidencia mestre Veridiano, de leme, ótimo de causo.
Profundo conhecedor da natureza e das lendas que compõem o universo de Lençóis, Mestre Veridiano desfilou um repertório interminável de estórias durante a longa travessia até a Ilha. Seu assunto preferido: a Cidade Encantada do Rei Sebastião.
“Debaixo daquela Morraria toda fica a Cidade do D. Sebastião. De vez em quando, aparecem tesouros de ouro e prata espalhados pela areia. Mas ai de quem ousar levar de lá algum destes tesouros. O Rei não perdoa o débito e o ousado acabará seus dias em Lençóis”, conta o barqueiro, em tom ameaçador. A verdade é que a Ilha destaca-se, também, por ser um dos centros do Sebastianismo no Brasil, que é uma espécie de fé messiânica surgida na Península Ibérica desde o desapa-recimento do Rei Português durante a Batalha de Alcacer-Quibir, no Marrocos, no século XVI. Acredita-se que a crença tenha chegado ao Brasil com os colonizadores lusitanos e floresceu em Lençóis graças ao panorama do lugar – repleto de dunas – similar às terras marroquinas onde El-Rei desapare-cera.
Região tem ecossistema rico
O ecossistema costeiro das Reentrân-cias Maranhenses oferece condições ideais para o desenvolvimento de uma rica biodiversidade. O sedimento trazido pelas águas fluviais fertiliza os mangues, proporcionando alimentação em abundância para os animais.
A todo instante, revoadas de guarás (eudocimus ruber) colorem o céu de vermelho vivo. Os maçaricos inter-rompem a sua migração anual entre as terras geladas da Patagônia e do Canadá para aproveitar o calor dos trópicos em meio à beleza selvagem do litoral. Até o quase-extinto peixe boi marinho (trichechus manatus) freqüenta as bandas de Maiaú.
As correntes marítimas e a fartura de nutrientes tornam estas águas uma das mais piscosas da costa brasileira. A pesca predatória, contudo, vem ameaçando algumas espécies de peixes, prejudicando o equilíbrio da cadeia alimentar do Arquipélago. “Vem barco de todo lado pra pescar aqui. Tem época que chegam 20, 30 barcos do Pará num só dia. Há cada vez menos peixes no mar e a situação está se complicando”, queixa-se Valdomiro, pescador nascido na Ilha de Caça-coeira. O Ibama tem realizado expe-dições fiscalizatórias visando coibir a pesca de algumas espécies durante o período da desova, mas a falta de pessoal e a escassez de recursos prejudica o trabalho. Em algumas ilhas como Guajarutiua e Mirinzal a Associação dos Pescadores tem realizado um importante trabalho de conscientização mas, em outras, o caos e a desinformação são totais.
As águas serenas do Rio Retiro
“Olha lá Morraria”, anunciou mestre Veridiano, apontando para a cordilheira branca que irrompia no horizonte. O pesqueiro avançou lentamente pelas águas serenas do Rio Retiro, marge-ando os proeminentes paredões de areia do litoral da Ilha até alcançar um pequeno povoado de quinhentos e tantos habitantes.
Junto aos igarapés, outros pescadores desatavam as estacas que prendiam a zangaria – espécie de rede de pesca presa a madeiras – para verificar o saldo da pescaria. Os peixes, de tamanho médio, eram colocados numa espécie de cesta quadrangular de trama rígida e forte, denominada cofo. As cestas enchiam-se rapidamente e eram entregues aos garotos que zanzavam por ali para que fossem levadas até a areia. Em pouco tempo, uma fileira de cofos formou-se em frente à praia, o prateado das escamas reluzindo sob o sol.
O passeio ideal para conhecer o deserto
Um passeio pela Morraria é programa imperdível para quem deseja conhecer o “deserto” que tanto inspirou a fé sebastianista.
O sobe e desce na cordilheira exige da musculatura e do pulmão, mas proporciona vistas privilegiadas da ilha e de seu entorno.
Nos meses de março e abril, no final do período das chuvas, centenas de lagoas de um azul profundo formam-se entre as dunas, transformando o lugar num verdadeiro oásis. A água doce verte para a base do areial, acumulando-se e infiltrando-se sob a Morraria. Basta cavar um ou dois palmos para que a água brote do ventre da terra infértil, insuflando ainda mais a fé daqueles que acreditam na existência do Reino Encantado.
“Como é que pode existir água doce no meio de todo esse areial? Só pode ser a Cidade Encantada de D. Sebastião”, comemora mestre Simião, um dos moradores mais antigos de Lençóis.
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