No primeiro mês de Lula, não fica apenas a marca da continuação da lua-de-mel dos brasileiros, que não largara do estouro de povo na capital. O marco externo não surpreende, apenas, pelo sucesso imediato que representou o périplo de Porto Alegre a Davos, Berlim e Paris. Vai-se mais fundo em alguns marcos fundadores, em que se conseguiu mais que o desenho de uma política externa marcada pelo imediatismo das pressões internacionais. Há a falar, já, dos ganhos de uma consciência política que fica, enquanto vai ao cerne do que importa — o vencer estereótipos que podem enrijecer um quadro de rejeição, até para além de dados inequívocos do que faça, de logo, um governo, a vencer o travo dos potentados lá fora.
O recado mais forte de Lula lá fora foi o da inserção do sucesso brasileiro, enquanto etapa da retomada objetiva de uma esquerda internacional, como alternativa ao neoliberalismo. Por força, o pressuposto desta aceitação assenta-se no malabarismo — para muitos — de manter o governo a mais conservadora das políticas de liquidez externa — todas, tarefa da criatividade espartana do ministro Palocci — e de assentar a prioridade do social, como matriz mesmo de uma visão mais complexa do relance do desenvolvimento.
O primeiro mês marcou fundo, como se o ímpeto da eleição continuasse a derrubar cancelas e abrisse legitimamente um espaço para nos inserirmos num grau de expectativa lá fora de que Lula já se deu conta, a partir da enxurrada de seguidores nas ruas de Buenos Aires. Gestos políticos articulam uma pauta de convivência nos jogos de poder. Recados nascidos dessas ações protagonizam uma virada de página, supondo um novo cenário para reunir os atores em jogo.
Lula começou, em Porto Alegre, por reptar a sociedade civil mais desabrida, ao declarar-lhe que iria a Davos. Enfrentou o único momento de silêncio puxado quase que a vaia, quando começou o discurso mais arriscado — e por isso mesmo fundador — de explicar por que o fazia e exigir, na hora, o apoio dos mais de 60 mil assistentes, de todas as bandeiras, nacionalidades e utopias, tão mais exóticas quanto radicais na sua generosidade.
Saiu com o mandato pleno para exatamente repetir em Davos a sua proposta, item por item, preanunciada no pôr-do-sol no Guaíba. Chegava ao frigorífico das idéias feitas na Suíça, com a noção exatamente da plataforma petista das exigências da sua mudança, e de plantar, para ficar, o recado do estranho no ninho. O impacto continuou na clara receptividade dos semideuses do poder econômico à viabilidade da proposta brasileira e, sobretudo, da crença que impunha no início de seu mandato, espancadas todas as deformações, pânicos e ironias, pela presidência determinadamente diferente e sem o bravado de arrogá-la. De Colin Powell a George Soros, passando pelo discurso de plenário, Lula assentou o Brasil, escorado na massa portentosa dos seus sufrágios, acrescida ainda pelos 83% de aprovação do início de governo.
Desaparece todo questionamento negativo da novidade do regime, sobretudo do caminho que pretende percorrer. O cumprimento das regras de jogo internacionais não lhe impedirão de infleti-las, pois que as reformas tributária ou previdenciária, ou mesmo política, irão muito além do assistencialismo confesso do Fome Zero, tal como Lula marcou, de logo, as diferenças entre as urgências e as necessidades reais da mudança vividas, discutidas e prontas ao debate nacional, nos anos da maturação cívica do partido que ora chega ao Planalto.
A primeira solda feita entre Porto Alegre e Davos pelo presidente implicará também um desses outros choques fundadores. Um começo de trânsito, sem transigência, entre os fóruns cria um diálogo quase que corrosivo aos seus próprios supostos. Derrete-se o gelo de Davos como o fórum dos consensos superiores e blasés, permeiam-se as velhas certezas, com o exotismo causado, e passa-se a exigir a própria transumância de nosso Paulo Coelho, sobre os possíveis caminhos bloqueados da globalização neoliberal.
Lula, no passo adiante, em Paris, foi recebido pelo núcleo do Partido Socialista francês. Em torno de Lionel Jospin, que traz, na figura, o trespasse do choque pela perda da eleição imperdível, Pierre Mauroy, Laurent Fabius, ao lado de Xavier de Hollande, de Claude Allegre, de Jack Lang ou de Segolène Royal, evidenciou-se a medida das trajetórias da alternativa ao modelo reinante. A esquerda francesa dá-se bem conta do seu papel único, de murro à maré direitista de toda Europa, a que, possivelmente, deverá se agregar, no abalo das últimas eleições regionais, o estandarte perdido pela social democracia de Schroeder. Mas na reestruturação de fundo que quer o partido, e a qual se pretende entregar num trabalho missionário, saído do zero um novo Lionel Jospin, é o de que uma frente antineoliberal, hoje, pode ter, num primeiro momento, como sua esperança de futuro, o sucesso de Lula no Brasil. Demorará a retomada do socialismo europeu, na mesma medida em que avança o exame de consciência e a reflexão radical. Jospin quase profeticamente já vira, há um ano, em Bordeos, o presidente como o fulcro de um mesmo denominador de luta contra uma globalização tornada hegemônica, e hoje chancelada pelo monopólio das definições de paz e guerra pela super potência.
Houve quem dissesse, na Embaixada brasileira em Paris, a 28 de janeiro último, que, nesse momento, o PT representava a idéia de mudança, caucionada pela aceitação externa do novo governo brasileiro. Também na Embaixada, e antes da entrevista com os socialistas, Lula recebeu o grupo de apoio internacional ao seu regime e à sua idéia, reunindo, à sua volta, vozes da latinidade, como Mário Soares, Federico Mayor, Gianni Vattimo, Alain Touraine ou Edgar Morin. O perpassar desta visão, agora, não é mais a de um profetismo nem de proposta a ser, ainda, conquistado. Mas a do intercâmbio da experiência que saltou todos os ferrolhos do ceticismo da esplêndida “velha Europa” que costura, para além da dicotomia dos fóruns, e das polarizações retóricas, o caminho difícil do avanço mundial da alternativa, abrigada no Brasil.
(*) Candido Mendes é presidente do Senior Board do Conselho Internacional de Ciências Sociais da Unesco e membro da Academia Brasileira de Letras.
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