Patrimonialismo e aparelhamento do poder público (mais de 600 mil cargos comissionados)

 

Opinião - 12/03/2015 - 07:49:26

 

Patrimonialismo e aparelhamento do poder público (mais de 600 mil cargos comissionados)

 

Luiz Flávio Gomes * .

Foto(s): Divulgação / Arquivo

 

Luiz Flávio Gomes - Professor - Jurista e professor. Fundador da Rede de Ensino LFG. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001)

Luiz Flávio Gomes - Professor - Jurista e professor. Fundador da Rede de Ensino LFG. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001)

Estado cleptocrata não é apenas o reconhecidamente governado por corruptos, senão também o governado ou cogovernado por aqueles que buscam extrair da coisa pública vantagens pessoais ou partidárias decorrentes do patrimonialismo, que significa o estatismo abusivo, a confusão entre o público e o privado, o uso do patrimônio público como se fosse patrimônio privado, a troca de favores (favorecimentismo), o favorecimento de setores da economia, o empréstimo de dinheiro público a apaniguados, o empreguismo (sobretudo dos cabos eleitorais e apoiadores), o corporativismo, o clientelismo, o fisiologismo, o nepotismo, o parentismo, o amiguismo, o filhotismo, o "onguismo" (apoios indecorosos a algunas ONGs que fazem parte do aparelhamento do Estado), o emendismo (emendas de distribuição de verbas, reservando-se parte do amealhado para o autor da emenda), o novo peleguismo (dos sindicatos), a cooptação midiática (servidão ou clientelismo midiático), o aparelhamentismo do Estado, o asistencialismo, o bolsismo educacional fundado em interesses eleitorais etc.

Diariamente são incontáveis os exemplos de todos esses malefícios, particularmente os chamados de empreguismo ou filhotismo ou nepotismo ou parentismo ou amiguismo: o prefeito de SP (Haddad-PT), por exemplo, nomeou três amigos do seu filho Frederico para ocuparem o cargo comissionado de assessor técnico no seu gabinete (salário de R$ 3,3); é a famigerada "cota do Fred"! Falou-se em nepotismo indireto (na verdade, trata-se do empreguismo, motivado, no caso, pelo amiguismo). Mais um uso indevido da coisa pública como se fosse patrimônio particular. O fenômeno pertence à categoria mais ampla do patrimonialismo, que é um dos nossos vícios originais. A governadora Suely Campos (PP-RR) nomeou 19 parentes (parentismo, nepotismo e filhotismo). Também o nepotismo trocado virou moda no território nacional (Pezão com Eduardo Paes etc.). Uso do dinheiro público de uma forma tão aberrante quanto qualquer outra forma de roubar. E tudo, "normalmente", impune, considerado apenas como parte da cultura (do sistema).

No Estado cleptocrata brasileiro o patrimonialismo se revela mais agudamente imoral no excesso de cargos de confiança (nomeação política para cargos comissionados), que dá margem para pressões políticas (fisiologismo), ineficiência administrativa e corrupção, com resultados extremamente maléficos para a sociedade. No nível federal são 22.700 cargos, preenchidos de acordo com escolhas acima de tudo políticas (não técnicas). Os Estados Unidos (diz a reportagem da Época), com estrutura de governo bem maior que a brasileira, têm apenas 8.000. Nos governos estaduais são 115 mil indicados pelos governadores e seus aliados; nos municípios é meio milhão de indicados por critérios que normalmente não aferem a meritocracia.Vejamos o infográfico da Revista Época: aqui.

 

Luiz Gomes

Esses cargos servem como moeda política para presidentes, governadores, prefeitos, vereadores, deputados e senadores. São vagas destinadas ao fisiologismo (divisão do Estado para governar), às alianças partidárias renegociadas a cada eleição (retribuição a financiadores, a candidatos não eleitos, a cabos-eleitorais); essa alta rotatividade prejudica, evidentemente, a eficiência da governança. Quanto maior o número de indicações políticas num órgão federal, menor a capacidade de o servidor fazer seu trabalho. A conclusão (recordada pela revista Época) é de um estudo de 2013 com dados de 325 mil servidores brasileiros, liderado pela pesquisadora Katherine Bersch, da Universidade do Texas, nos EUA. "O efeito sobre a administração é devastador", afirma Cláudio Weber Abramo, diretor executivo da ONG Transparência Brasil, que propõe limitar o número de cargos comissionados; em 2011, a pesquisadora Maria Celina D'Araújo, da PUC do Rio de Janeiro, constatou que um quarto dos funcionários federais nos cargos comissionados federais de alto escalão eram filiados a algum partido. Desses, 80% eram petistas (para sustentação do partido no poder uma grande parte dos nomeados pagariam "dizimo", um "dizimo dialético"). Vejamos: aqui.

 

Luiz Gomes

 



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Patrimonialismo e empreguismo público (Leo Rosa de Andrade)

O Estado brasileiro só formou contornos estruturais quando aqui aportou a família real (1808), fugida de Bonaparte. Na comitiva ultramarina estavam a nobreza e o corpo de altos funcionários que administravam a Metrópole, um séquito de 15 a 25 mil pessoas. Para dar-se conta das necessidades da burocracia e dos interesses dos burocratas, instalou-se por aqui definitivamente o serviço público (assim como o uso político dos serviços e do servidor públicos). O Estado, pois, nascia invertido: criavam-se tantos empregos públicos quantos necessários não para atender as necessidades da população, sim, para acomodar o aparato administrativo português.

O emprego na “máquina pública” passou a ser o mais buscado; tinha um valor social por ser o espaço dos nobres. O não-nobre (plebeu) que conseguisse adentrá-lo descortinava um mundo de vantagens cobiçadas por todos. Daí a luta dos pais para colocarem (sem concurso de aferição da meritocracia) o “filho na folha” (folha de pagamento do Estado), ou a esposa ou os parentes ou os amigos ou os correligionários (ou todos eles conjuntamente). Forma clássica de roubar o erário público. O Estado português, propriedade da família real, era lugar de acomodação da nobreza e de privilegiados outros que logravam as graças do Rei. Aqui reside uma das mais expressivas manifestações do patrimonialismo, que viria formatar a “alma” do Estado brasileiro (a partir de 1822).

O estabelecimento da República (1889) não fez muito mais do que afastar a família real. Grande parte dos funcionários permaneceu, acrescentando-se a presença de militares na burocracia, e fundou-se o sistema coronelista de dominação (sempre sem perder a perspectiva patrimonialista). A burocracia tinha o comando central, e os coronéis da Guarda Nacional, que eram senhores de terra, tinham o comando do interior do Brasil. Desses focos emanava o poder na República Velha, e os poderosos que ocupavam postos muito pouco se voltavam ao coletivo, restando que a administração pública prestava-se, principalmente, a lugar de reunião e compensação de interesses privados.

A Revolução de 30 (com Getúlio Vargas) reformulou o Estado; fê-lo voltado para o público em inúmeros aspectos, mas os interesses privados prevaleceram. A redemocratização do pós-guerra (1945) alterou em parte os ocupantes da máquina pública, contudo os maiores benefícios continuaram encaminhados aos interesses privados. O golpe militar de 64 fartou-se de instalar em altos postos quadros oriundos das Forças Armadas, e imprimiu novas formas de gestão, mas os recursos nacionais não foram levados a endereços muito diversos. A redemocratização (1985), igualmente, não alterou as coisas e, ademais disso, viu confirmarem-se como nunca as variadas categorias de servidores públicos em corporações organizadas e reivindicadoras de privilégios.

A arrecadação nacional acabou destinada em grande parte a cobrir nada mais do que obrigações decorrentes desta situação: um Estado privatizado por dentro (interesses da burocracia) e por fora (beneficiários e parasitários do tesouro). A revista Época (2/10/14) levantou a quantidade e as anomalias do funcionalismo no Brasil, sublinhando que a questão não é a quantidade de funcionários, mas, sim, a qualidade dos serviços prestados à população. Vejamos:

 

Luiz Gomes

Qual o mecanismo que produziu e garantiu as condições de reprodução desta situação de privatização (patrimonialista) do Estado? Mais do que a privatização do Estado, foi o enfraquecimento das instituições públicas e o fortalecimento de indivíduos (ou grupo de indivíduos). Isso insulta o próprio conceito de república. A ideia de república baseia-se na transferência dos poderes individuais para instituições. Prevalecendo o institucional, prepondera o interesse geral. Se, ao invés, a instituição é controlada por indivíduos, resta que indivíduos controlam o interesse geral. O controlador privado da instituição pública pode ser bom ou mau, isso é aleatório. O jogo, todavia, não será democrático e tenderá a crises. As crises resultam de desacertos entre os indivíduos privados controladores das instituições. Para contornar crises, para que se toque o governo, pactuam-se e repactuam-se os interesses particulares alojados nas entranhas do Estado.

O mensalão e, agora, o petrolão, evidenciam um ”modo substitutivo” disso: cooptavam-se ambições (compravam-se parlamentares, comprava-se o poder) mediante mensalidade. Dados os limites de retalhamento do País, creio que tiveram (governo Lula) como mal necessário e por mais prático corromper à prestação alguns políticos em troca da “fidelidade da base”. Nasceu o modo petista de estabelecer a governabilidade: ”Nunca antes na história deste País” corrompeu-se tanto com dinheiro público para gerenciar a República. Fizeram-no, todavia, também, como sempre se o fez, para arranjar interesses privados (dos titulares do poder) no controle do Estado. É isso o que estamos vendo no “petrolão”: composição de interesses privados e públicos (financiamento dos políticos, dos partidos e da governabilidade de ocasião, ou seja, da manutenção do PT no poder), dentro da estrutura de uma criminalidade estruturalmente organizada sob o formato P6: Parceria Público/Privada para a Pilhagem do Patrimônio Público (que também se revela presente no “metrolão” do PSDB, nas negociatas incontáveis e indecorosas do PMDB etc.).

Esse momento escandaloso (outra vez) da sociedade brasileira insiste em antiga solicitação: reforma política. A Teoria do Estado sabe que a vida republicana necessita de instituições fortalecidas. É condição alicerce. Nada prosperará, entretanto, sem ampla negociação, pois não se superarão interesses estabelecidos com facilidade. O País precisaria, para o propósito, da dedicação de seus melhores perfis públicos. Ocorre que os perfis públicos brasileiros, piores ou melhores, encontram-se enredados no sistema político, que é, precipuamente, eleitoral. Esse sistema elegeu os políticos que poderiam mudá-lo, mas que não vão fazê-lo, pois por ele se elegeram, se elegem e pretendem continuar se elegendo. Esse sistema, ademais, contempla alianças: para somar votos, os políticos (ignorando ideologias) compõem-se. Na composição, os planos são para a eleição, não para o País. Composições pagam-se com cargos, com o fatiamento do Estado (ou seja: com patrimonialismo, que é expressão da cleptocracia).

Não se pode responsabilizar apenas os políticos por isso. Se um político recusa-se a cumprir esses hábitos, dificilmente se elege; se os cumpre, compromete-se (sobretudo com a corrupção). E ainda há que “atender” o honesto povo. É o jogo, ou seja, o sistema cleptocrata vigente. E la nave Brasil va (ora construindo pequenos progressos, malgré tout, ora para o mais profundo abismo ético, político, administrativo, econômico). Um único diferencial nesse cenário leopardista (“muda-se tudo para que tudo fique como está”) seria uma inesperada movimentação em massa da Sociedade Civil (mas essa hipótese, lamentavelmente, pertence ao reino da imprevisibilidade).

Luiz Flávio Gomes - Professor - Jurista e professor. Fundador da Rede de Ensino LFG. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001)

 



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