Corrupção e democracia de fachada: 1% tem riqueza igual a 99%
Luiz Flávio Gomes * .
Foto(s): Divulgação / Arquivo
LUIZ FLÁVIO GOMES, jurista e diretor-presidente do Instituto Avante Brasil
De acordo com os dados da ONG inglesa Oxfam, uma elite (a do 1%) deterá em breve (2016) riqueza equivalente a 99% da população mundial (site do Estadão 19/1/15). A riqueza se concentra cada vez mais no mundo todo (depois de Piketty não há mais como negar isso). A riqueza, no entanto, é a eficácia e a virtude do capitalismo. Não há como impedir que se ganha dinheiro com o seu trabalho, sua invenção ou seu empreendimento. O problema está na desigualdade extrema, que é seu vício (seu lado sombrio). Um segundo problema é que o poder do dinheiro não se limite ao mercado e ao mundo econômico. Sabe-se que os ricos são dominantes não apenas pelo seu poder econômico, sim, porque dominam também o poder político, “comprando-o”, seja por meio da corrupção (que estrutura a criminalidade organizada político-empresarial chamada P6: Parceria Público/Privada para a Pilhagem do Patrimônio Público), seja por meio do “financiamento” das (caríssimas) campanhas eleitorais. Exemplo: somente as empreiteiras investigadas na Operação Lava Jato doaram, juntas, pelo menos R$ 484,4 milhões a políticos e partidos nas eleições de 2014. É o que mostra levantamento do jornal O Globo (citado pelo site do Congresso em Foco). Segundo a reportagem, a Odebrecht, a OAS, a Andrade Gutierrez, a Queiroz Galvão, a UTC, a Camargo Corrêa, a Queiroz Galvão, a Engevix, a Mendes Junior e a Toyo Setal repassaram somas vultosas a candidatos e direções partidárias por meio de subsidiárias, cujas ações são controladas pela matriz do respectivo grupo. Financiamento de campanhas + superfaturamento de obras = corrupção (ou seja: cleptocracia, que contribui para a democracia de fachada).
Corrupção e democracia de fachada
A desigualdade extrema gera uma infinidade de distorções no funcionamento das sociedades (veja Piketty). Uma delas consiste no “sequestro” da democracia, ou seja, o poder econômico “compra” o poder político, forjando assim uma “democracia de fachada”, onde quem manda verdadeiramente são os “grandes eleitores”, os financiadores, não o povo. Democracia é o governo pelo povo. Uma das suas distorções reside na plutocracia (governo das grandes riquezas). Outra mácula recai sobre a cleptocracia (Estado cogovernado pelos ladrões). Quando a plutocracia (riqueza) cogoverna por meio da fraude, da corrupção e outros ilícitos, se torna cleptocrata. Os escândalos da Petrobras e do metrô de SP constituem exemplos de cleptocracia (assim como da criminalidade organizada P6). Comprovam que o Estado também é governado por ladrões. O “financiamento” das campanhas está na antessala da cleptocracia. Todos os benefícios e privilégios decorrentes dele (licitações fraudulentas, superfaturamentos etc.) configuram atos de cleptocracia. O esforço que as massas divididas empenham umas contra as outras (luta entre os grupos não dominantes) resulta quase sempre inútil, quando se sabe que o destino do país está nas mãos de quem domina. Enquanto os de baixo se digladiam e se odeiam (ou até mesmo se matam), os de cima financiam os políticos de todos os maiores partidos, manobram as leis e, em consequência, a Justiça, e promovem a distribuição da riqueza para eles.
A profunda e até repugnante desigualdade (sobretudo nos países de capitalismo extremamente injusto, como o Brasil) vem destruindo não só a eficácia do constitucionalismo democrático de direitos e deveres, senão também a própria democracia (cada vez mais “comprada”, portanto, cada vez mais corrompida). Diante da concentração exagerada das riquezas e das rendas, as classes médias, em muitos países, estão sendo rebaixadas (praticamente no mundo todo). Os pobres estão indo para a miséria e os miseráveis se convertendo em indigentes ou famintos. Não há ambiente e terreno mais propício para o afloramento de alguns venenos destrutivos da sociedade, como o do populismo, o da discriminação, o do ódio ao outro (ao inimigo), o da violência, o da intolerância e os dos sectarismos. Na democracia representativa cada cidadão tem direito a um voto. Cada cabeça um voto. Esse é o discurso legitimador do sistema. Nas democracias conspurcadas (de fachada), mandam na verdade os grandes eleitores, saídos da elite econômica dominante. A elite que manobra, manipula e monopoliza a política, o mercado e a cultura faz da democracia e dos eleitores um joguete (mero instrumento) à disposição dos seus interesses.
Saiba mais
Financiamento das campanhas eleitorais
A contribuição das empresas aos políticos brasileiros é diluída por meio de empresas com o nome menos associado à holding; isso também ajuda a deixar as doações menos “escancaradas”, disse ao jornal O Globo o professor de administração e negócios do Insper Sérgio Lazzarini. Segundo a reportagem, 16 dos 28 políticos delatados pelo ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa, conforme o jornal O Estado de S.Paulo, receberam doações de empreiteiras investigadas pela Lava Jato. Quem recebeu maior volume de contribuições dessas empreiteiras foi o senador Delcídio Amaral (PT-MS), que perdeu a disputa ao governo de Mato Grosso do Sul. Ele declarou à Justiça eleitoral ter recebido R$ 9,7 milhões dos grupos Engevix, OAS, UTC e Queiroz Galvão. Derrotado ao governo do Rio Grande do Norte, o presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), foi beneficiado com R$ 9 milhões dos grupos Galvão, OAS, Odebrecht e Queiroz Galvão. Ainda de acordo com o Globo, o senador Lindbergh Farias (PT-RJ), terceiro colocado na corrida ao governo fluminense, foi beneficiado com R$ 2,8 milhões em doações registradas da OAS, da Queiroz Galvão e da UTC (informações do site Congresso em Foco).
Explosão da desigualdade
A crise econômica mundial de 2008 gerou uma “explosão de desigualdade” (tal como sugerida por Piketty, no seu best seller O capital no século XXI). Parte do setor acadêmico crítico chama isso de “brasilianização do mundo” (o mundo está ficando desigual tanto quanto o Brasil). Em 2009, o 1% mais rico detinha 44% do PIB mundial; em 2014, 48%; em 2016, será de 50%. Ao mesmo tempo, uma em cada nove pessoas passa fome diariamente; mais de um bilhão de pessoas ganham apenas US$ 1,25 por dia. Dos 52% restantes (do PIB global), quase tudo (94,5%) pertence aos 20% mais ricos; os demais (80%) contam com apenas 5,5% do PIB mundial. As 85 pessoas mais ricas possuem patrimônio equivalente a 3,5 bilhões de pessoas – Globo 15/10/14: 23. Os números sobre a riqueza no Brasil são precários (há uma crítica de Piketty nesse sentido). O que se divulga? Que os 10% mais ricos no Brasil possuem 73% da riqueza de todo país; 225 mil pessoas são milionárias; 1,9 mil são bilionários – muitos licitamente, outros por força da roubalheira generalizada na nação, da evasão fiscal etc.; esse topo da pirâmide está cada vez mais rico e o pobre cada vez mais pobre dizem as pesquisas internacionais (Valor 15/10/14: D2).
Plutocracia
Plutocracia (do grego ploutos: riqueza; kratos: poder) é o sistema político no qual o poder é exercido pelo grupo dos mais ricos. Em síntese: plutocracia significa o Estado governado ou cogovernado pelo poder da minoria que detém a grande riqueza. Os membros da plutocracia fazem parte da elite econômica dominante. Não se pode confundir (conceitualmente) a elite econômica (a plutocracia) com a elite ideológica, que defende a ideologia dos privilégios e das vantagens pessoais e grupais, refutando as minorias que lutam por justiça social. Teoricamente pode haver algum plutocrata que não compartilha de toda a visão da elite ideológica. De qualquer modo, historicamente se sabe que quanto mais riqueza concentrada nas mãos de poucos (tal como demonstrou o economista francês Piketty), mais desigualdades extremas são disseminadas (é o que também a Oxfam vem demonstrando nos últimos anos). Isso dificulta, sobremaneira, a mobilidade social (e, muito provavelmente, até mesmo o crescimento econômico). A plutocracia naturalmente promove a exclusão de pessoas. Para sua conservação trabalha a elite ideológica que é claramente conservadora (manutenção do que está vigente): firma-se no passado (nas tradições) para desfrutar o presente e não aceita nada que modifique essa situação no (ou para o) futuro.
Oligarquias
As oligarquias são grupos fechados e pequenos que detêm o controle do poder (político, econômico e/ou cultural); geralmente são formados por familiares de grandes proprietários. A rigor, qualquer corpo dominante pode ser oligárquico (desde que fechado e pequeno). Tradicionalmente, no entanto, a palavra oligarquia está mais vinculada aos grupos de grandes proprietários rurais, que exercem o poder, sobretudo o econômico e o político, visando à satisfação dos seus exclusivos interesses, em detrimento das necessidades populares. Mesmo quando praticam o clientelismo, isso é feito no seu interesse, não no interesse de toda a população. Na História do Brasil, os governos da República Velha (1889-1929), por exemplo, foram todos oligarquicos. Incluindo os governos militares (que foram dominados pelas oligarquias). Grandes proprietários de terras (particularmente cafeicultores) utilizaram sua influência política e econômica para determinar os destinos da nação. Em benefício deles (evidentemente). Apesar da presença de um sistema representativo (democracia de fachada), a troca de favores (clientelismo), a corrupção do processo eleitoral e outros métodos coercitivos (violência dos jagunços, por exemplo) impediam a ascensão dos outros grupos políticos (assim como da população). Quando a oligarquia significa o domínio de um país sobre outro (ou outros), fala-se em imperialismo. As oligarquias naturalmente fazem parte das classes dominantes, mas pode ser ou não integrante da plutocracia (grandes riquezas). Nas oligarquias nem sempre é a riqueza que governa. Elas não se confundem com a aristocracia (elite dominante ligada ao rei). As oligarquias fazem parte da elite ideológica. Sobretudo quando os membros dessa elite assumem um verniz aristocrático, se julgam superiores e melhores que todas as demais pessoas.
* Luiz Flávio Gomes - Professor - Jurista e professor. Fundador da Rede de Ensino LFG. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001)