A História até se pode repetir, mas em circunstâncias diferentes. O aforismo pode muito bem servir como base para justificar a inversão de posições dos dirigentes petistas, a partir do presidente Luiz Inácio e seu braço direito, o ministro José Dirceu, no que se refere aos pontos mais polêmicos das propostas para as reformas previdenciária e tributária. Se ontem faziam pregação contundente contra a taxação de inativos ou contra o aumento da idade para a aposentadoria e, hoje, são eloqüentes defensores da idéia, é porque a História está sendo escrita com as letras de uma realidade que não admite “bravatas” de quem está no poder. Isso mesmo. Como o próprio presidente admitiu há dias, bravata é um luxo que só se pode dar quem está na oposição.
Pior seria se a bravata fosse utilizada de maneira vertical por petistas e aliados. Não sobraria pedaço de território para abrigar desvalidos e afogados no monumental naufrágio do transatlântico capitaneado pelo comandante Lula, depois de uma travessia de 1.460 dias por mares revoltos e águas turvas. O que os renitentes companheiros radicais do PT, pendurados na casca grossa de uma árvore ressecada, ainda não perceberam é que a coerência, como virtude, só se engrandece diante do ideário do bem. Não há mérito nenhum na coerência quando ela está a proteger vícios, mazelas e costumes de uma velha ordem. A questão que se impõe na mesa de discussão é esta: se o País não fizer reformas adequadas para preservar as mínimas condições de uma estrutura previdenciária, dentro de poucos anos, não haverá recursos para pagar aos aposentados. A quebradeira do País, em cascata, pois pegará todas as unidades federativas, poderá ser o vértice de uma convulsão social. Isto é, ou a reforma é feita ou o Brasil quebra. Ou vai ou racha.
Os aspectos mais polêmicos das reformas hão de merecer a devida atenção, principalmente as medidas que poderão ferir os direitos adquiridos. Afinal de contas, o pior que pode ocorrer a um país que começa a resgatar a confiança internacional é cair no despenhadeiro da insegurança jurídica, situação vivida em alguns ciclos da atualidade e que foi responsável pelo aumento do risco Brasil e fuga de capitais estrangeiros. A questão dos inativos precisa ser analisada sob esse prisma. Há de se chegar a um denominador comum, capaz de agregar avanços e mudanças substantivas, sem derrubar a ordem jurídica.
Quanto ao barulho dos chamados radicais livres, é inadmissível que sejam punidos por discordar. Se não são capazes de conceber o plano ideal para o País, se querem continuar a adensar a hipocrisia moral que se apropria, indebitamente, do valor da coerência, para montar uma cavalgadura de marketing, que assim o façam. O melhor que lhes pode acontecer é uma punição que os alçará à condição de vítimas. Se os comandantes petistas mudaram de posição, assumindo atitudes mais responsáveis, dando vazão à velha lição de Ortega y Gasset, para quem “só os imbecis não mudam”, não precisam adotar a rigidez antiga e expurgar de seus quadros os perfis mais refratários às mudanças.
Os partidos da oposição, por sua vez, cometerão um grande desatino caso decidam privilegiar o olho eleitoral em detrimento da chama cívica. Refutá-las sob alegação de que foi o PT, no passado, que as tornou inviáveis parece ciúme infantil. Infelizmente, viceja no País uma semente de desconfiança, que insiste em negar as coisas positivas, em apagar as ações bem feitas e em execrar as atitudes corretas. Tudo sob o pano de fundo de emboscadas, que animam os atores políticos. A esse tipo de “pensamento baixo” o pensador José Ingenieros chama de mediocridade, esse espaço de junta filisteus, que se deixam enganar pelas aparências, hipócritas, que tomam a sério todos os dogmatismos sociais, submetendo-se às farsas humanas, e os equilibristas, preocupados em se acomodar às pequenas oportunidades.
Uma pátria é muito mais que a soma de suas unidades físicas e dos habitantes que a compõem. É um sincronismo de espíritos e de corações, de têmperas e vontades. Pátria é comunhão de esperanças, de sonhos comuns e anelos coletivos em torno de grandes coisas. Se os parlamentares e os grupos organizados que começam a cercar os limites das reformas previdenciária e tributária se derem conta disso, poder-se-á acreditar que, dentro de algum tempo, o Brasil estaria abrindo uma grande janela para o amanhã.
(*) Gaudêncio Torquato, jornalista, professor titular da USP e consultor político. E-mail: gautorq@gtmarketing.com.br - Site www.gtmarketing.com.br
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